segunda-feira, 29 de abril de 2019

SHAZAM, DE MOACYR SCLIAR



Extinto o crime no mundo, o Capitão Marvel foi chamado a uma sessão especial do Senado norte-americano.
Lá foi saudado por Lester Brainerd, senador por Louisiana, e recebeu a medalha do Mérito Militar e uma pensão vitalícia. Comovido, o Capitão Marvel expressou seu agradecimento e manifestou o desejo de viver tranqüilamente por toda a eternidade.
Para seu retiro, o Capitão Marvel escolheu a cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Alugou um quarto numa pitoresca pensão do Alto da Bronze; pensava em escrever suas memórias.
Nos primeiros tempos, o Capitão Marvel despertava a atenção da vizinhança. Sua capa vermelha, o interessante macacão que usava, faziam com que uma multidão de garotos corresse atrás dele, gritando: "Voa! Voa!" Desgostoso, o Capitão Marvel evitava sair à rua. Com o tempo, porém, foi caindo no esquecimento do público.
A televisão exibia novas séries filmadas; duas ou três revoluções eclodiram no país; e o Brasil tornou a levantar o campeonato mundial—o que não acontecia há muito tempo—graças a seu arqueiro, um mulatinho chamado Freud de Azevedo, que por uma curiosa aberração da natureza, tinha nascido com três braços.
Além disto, o Capitão Marvel tinha renunciado ao uso de seu uniforme tradicional e usava uma roupa comum, de tergal cinza. Suas memórias foram lançadas com relativo sucesso pela Editora Vecchi. À tarde de autógrafos compareceram autoridades civis, militares e eclesiásticas; críticos viram no livro valores insuspeitados, um novo olhar sobre o mundo. Mas depois disto, o Capitão Marvel foi novamente esquecido. Passava os dias no seu quarto de pensão, folheando velhas revistas em quadrinhos e relembrando com saudades o maligno Silvana, falecido de câncer muitos anos antes. À tarde, o Capitão Marvel trabalhava no seu jardim. Conseguira que a dona da pensão lhe cedesse o terreno atrás da cozinha e ali plantava rosas. Desejava obter uma variedade híbrida, mas todas as suas tentativas tinham sido vãs.
À noite, o Capitão Marvel assistia à televisão e ia ao cinema. Olhava com melancólico desprezo os heróis modernos, vulneráveis a balas, incapazes de voar, usando apenas a inteligência bruta. Depois voltava para casa, tomava um soporífero e ia dormir. Aos sábados, costumava ficar num bar perto da pensão, tomando cachaça com maracujá e conversando com antigos boxeadores.
Numa destas noites, em que o Capitão Marvel estava especialmente deprimido (já tinha tomado oito cálices de bebida), uma mulher entrou no bar, sentou-se ao balcão e pediu uma cerveja.
O Capitão Marvel considerava-a em silêncio. Durante sua longa vida, nunca dera muita atenção a mulheres; o combate ao crime era uma tarefa absorvente, então, e ele não desejava desperdiçar energias. Mas agora, aposentado, o Capitão Marvel podia olhá-la à vontade.
Não era uma mulher bonita. Teria cerca de quarenta anos, era baixa, gorda e estalava a língua depois de cada gole de cerveja. Mas era a única mulher no bar naquela noite de sábado.
Sentado à mesa, o Capitão Marvel olhou sua própria imagem no espelho descascado à sua frente. Mesmo naquele ambiente melancólico, era uma esplêndida figura de macho e ele não poderia deixar de reconhecer isto.
—"Posso sentar?"—O Capitão Marvel voltou-se. Era a mulher, com o copo de cerveja na mão. Sentou-se.
Conversaram algum tempo. O nome da mulher—pelo menos, foi o que ela disse—era Maria Conceição. O Capitão Marvel declarou chamar-se José e ser vendedor de automóveis. Sentia-se mal; ao contrário dos heróis modernos, não tinha o hábito da simulação, da intriga, do disfarce.
"Vamos para o meu quarto, bem?"—sussurrou a mulher às três horas da manhã.
Foram. Era no quarto andar de um velho prédio na rua Marechal Floriano. As escadas de madeira, pontilhadas de escarro e pontas de cigarros, rangiam ao peso dos dois. A mulher bufava e tinha de parar a cada andar.
"É a pressão alta". O Capitão Marvel teve vontade de tomá-la nos braços e subir voando; mas queria permanecer incógnito.
A mulher abriu a porta. Era um quartinho miserável decorado com flores de papel e imagens sagradas. No centro, uma cama coberta com uma colcha vermelha.
Arquejante, a mulher voltou-se para o Capitão Marvel e sorriu: "Me beija, querido.'' Beijaram-se longamente. Sem uma palavra, tiraram a roupa e meteram-se na cama. "Como tu és frio, bem"—queixou-se a mulher. Era a pele de aço, a couraça invulnerável que tantas vezes protegera o Capitão Marvel e que já começava a enferrujar debaixo das axilas O Capitão Marvel pensou em atritar um pouco o peito com as mãos; mas tinha medo de soltar faíscas e provocar um incêndio. Assim, limitou-se a dizer: "Já vai melhorar. Já vai melhorar."
—"Vem, querido. Vem"—murmurou a mulher. O Capitão Marvel lançou-se sobre ela.
Um urro de dor sacudiu o quarto. "Tu me mataste! Me mataste! Ai, que dor!"—berrava a mulher. Assustado, o Capitão Marvel acendeu a luz: da vagina, corria um riacho de sangue. "Me enterraste um ferro, bandido!" Às pressas o Capitão Marvel enfiou as calças. "Socorro! Socorro!" Sem saber o que fazer, o Capitão Marvel abriu a janela. Luzes começavam a se acender nas casas vizinhas. Ele saltou.
Por um instante, desceu; mas logo em seguida adquiriu equilíbrio e planou suavemente. Às vezes, soluçava. Lembrava-se dos tempos em que era apenas Billy Batson, modesto locutor de rádio.
Havia uma palavra capaz de fazê-lo voltar àquela época; mas o Capitão Marvel já a esquecera.


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