segunda-feira, 29 de abril de 2019

RESENHA "FELIZ ANIVERSÁRIO", DE CLARICE LISPECTOR


O conto “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, publicado originalmente em 1960, no livro “Laços de Família”, narra a comemoração do aniversário de Anita, a matriarca de uma grande família carioca, a qual completa oitenta e nove anos. Os parentes se fazem presentes principalmente por questões sociais e não pelo afeto. Aproveitam a ocasião para obter algum benefício do evento como passear em Copacabana. A reunião familiar, assim, começa a se mostrar permeada de situações de hipocrisia devido à rixa entre irmãos e não um evento alegre como poderíamos imaginar. Em vários trechos encontramos críticas sociais de forma quase sutil. É o caso, por exemplo, da personagem Zilda, que é a única filha mulher, entre seis irmãos homens, por isso acabou recebendo a responsabilidade de cuidar da mãe. Nesse trecho, Clarice retrata um machismo imprimido na nossa sociedade em que perpassa a ideia de que cabe à mulher a obrigação de cuidar. O tratamento dado à aniversariante transita entre o dado a uma criança e o dado a um objeto, conforme é possível observar no seguinte trecho: “E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.” Começamos, então, a construir a ideia de que se trata de uma personagem já tão senil que não interage mais com os demais á sua volta. Segue, então, a festa. O filho mais velho forçosamente tenta homenagear a mãe. Inicia-se uma sucessão de comilança, bagunça, barulho e sujeira. Zilda se mostra revoltada pelo excesso de trabalho e pelos gastos que bancaria sozinha. Ao cantarem o “Parabéns”, que retrata a falta de sintonia da família (uns cantam em inglês e outros em português; depois tentam corrigir e o problema se inverte), a aniversariante corta o bolo com uma faca de modo comparável a uma assassina esfaqueando alguém. Os convidados se espantam, mas logo se esquecem do fato em função da voracidade em comer o bolo. Nesse momento, começamos a perceber a idosa como uma morta posta à cabeceira da mesa, mas, surpreendentemente, é a partir desse momento que passamos a ter consciência do quanto ela está viva e lúcida. “Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. (...) Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.” A partir desse trecho é possível compreender que toda a sua ausência na festa é fruto da insatisfação com o resultado da “obra” da sua vida, a sua família. A cuspida dada pela aniversariante, observada como um ato entre o senil e o insano pelos convidados é nada mais que o resultado da sua revolta – um protesto. Também o momento em que a senhora pede um copo de vinho surpreende os convidados gerando dúvida se deve ter o seu pedido atendido ou não. Fica, assim, cada vez mais evidente que a família já havia se esquecido do ser humano que habitava aquele corpo agora tão idoso, como se pode ver no trecho: “Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra.” A família se despede com o sentimento de que a festa foi um sucesso, contrariando o curso interpretativo da narrativa. Os presentes se mostram satisfeitos ou aliviados por colocarem os pés para fora do prédio. A sua despedida deixa claro que não são mais uma verdadeira família, ou seja, não estão mais ligados por laços afetivos, pois confraternizar para eles é apenas uma obrigação a ser cumprida. Utilizando-se de um narrador onisciente capaz de mergulhar a fundo nas mentes dos personagens e tirar de cada um o cinismo que tenta esconder, Clarice consegue brincar com a expectativa do leitor que, acreditando inicialmente na ausência de compreensão dos fatos por parte da aniversariante, acaba se tornando cúmplice da hipocrisia nessa festa de aniversário que, observando-se de perto, nada tem de feliz.

Caso deseje adquirir o livro que consta este conto, utilize um dos links abaixo:
- Clarice Lispector - Todos os contos: https://amzn.to/2XP01Ji
- Os 100 melhores contos brasileiros do século -https://amzn.to/2VxnwcE

Um comentário: