terça-feira, 2 de julho de 2019

CACHORRO MAGRO, DE MICHELE MACHADO FERNANDES


Já eram dez horas e nada tinha comido ainda. Avistou de longe o sarnento fuçando nos sacos de lixo. Foi lá fazer companhia no desespero da fome. Rasgou alguns sacos e, enquanto o companheiro se satisfazia com alguns restos de comida azeda, um homem grande e furioso espantou os dois das lixeiras do seu restaurante.
Os dois companheiros ficaram pelo meio fio, correndo, pulando e se divertindo alheios aos carros que passavam apressados na avenida.
Já era meio-dia quando farejaram um perfume defumado. Uma senhora saía da mercearia carregando umas linguiças. Os dois foram atrás lançando um olhar que inspirava piedade. A mulher pôs a mão na sacola e puxou uma rodela de mortadela. Deu ao sarnento, que ingeriu sem mastigar. Ela se apiedou da sua fome, afagou a sua cabecinha e convidou pra ir até a sua casa prometendo um banho com mata-cura.
Agora sozinho e de barriga roncando, achou melhor dormir espremido num cantinho embaixo duma marquise pra ver se a fome passava.
Às três da tarde, lá ia ele pra praça central. Um senhor idoso sentado num banco arremessava pipocas às pombas. Se aproximou mansamente demonstrando sua preferência por pipocas. O velho se levantou, amassou o pacotinho, se dirigiu à lixeira onde depositou o saco engordurado. O nosso amiguinho espantou as pombas e se satisfez com quatro ou cinco pipocas ainda caídas ao chão.
Em seguida, avistou o chafariz. Correu de boca aberta até lá lembrando que sentia sede. A felicidade foi uma patada na sua pequena alma quando lembrou que a água é de todos. Bebeu e se banhou pra se refrescar do calor. Um guarda que cuidava da praça correu na sua direção e já ia erguendo um cassetete pronto pra acertar o seu lombo. Saiu com o rabinho entre as pernas e a cabeça baixa demonstrando submissão. A água não é de todos.
Às oito da noite, diante da carrocinha de cachorro-quente, uma fila de pessoas que não olhavam pros lados aguardava pelo lanche, enquanto ele olhava fixamente o movimento das salsichas entrando nos pães ostensivamente.
Uma salsicha, duas salsichas, três salsichas, quatro salsichas. Foi só na quinta que um homem que puxava duma perna com um sotaque carregado nos erres pediu dois cachorros-quentes. Um seria pro seu amiguinho faminto, falou com um sorriso.
Recebeu a sua refeição e um afago na cabeça. Comeu com voracidade. Nem percebeu o homem ao telefone falando duma criança que andava sem os pais, enquanto lambia com gana o último grão de milho no plástico que antes envolvia o cachorro-quente. Deu ainda uma boa lambida ao redor da boca com o intuito de não perder sequer uma gota de maionese. De barriga cheia, fez a parte do cachorro magro e saiu sem nenhum agradecimento.
          Andou até o beco que era o seu quarto, deitou na sua cama de papelão, e olhou pro teto de estrelas. Antes de pegar no sono, o menino ainda pensava se amanhã teria de novo a sorte de conseguir comida. Nesta noite, dormiu sem a companhia do sarnento.

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