quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Camping

4 de janeiro. Querido diário: amanhã vamos procurar um lugar para acampar. Não agüento mais essa cidade.
7 de janeiro. Querido diário:achamos um lugar maravilhoso para camping. É tão bonito que papai combinou com uns amigos para voltarmos.
11 de janeiro. Querido diário: foi fantástico. H avia mais de dez casais com crianças, apaixonados pela natureza. Limpamos um pouco o local, derrubamos algumas árvores e agora há mais espaço para todos. 2
2 de janeiro. Querido diário: o camping está cada vez melhor. O s vendedores ambulantes descobriram nosso acampamento e agora se pode comprar tudo lá. O número de famílias aumentou muito e já tem gente que nunca vi mais gorda. Já tem churrasqueiras e sanitários.
3 de fevereiro. Querido diário: conheci um amigo,Paulo. O pai dele é dono de uma farmácia e isso foi sorte porque sempre se precisa de quem entenda de saúde no mato. Ah, fizeram umas ruas pelo meio da floresta. Falam em instalar água e luz no camping. É mais conforto.
27 de fevereiro. Querido diário: instalaram água e luz. Em boa hora, porque o camping está tão grande que precisava mesmo. O s ambulantes decidiram que é melhor ficar fixo lá e montaram umas tendas que não fecham a semana inteira, de tanta gente que vai lá. Paulo disse que o pai dele vai botar um ambulatório lá.
8 de março. Querido diário:hoje eu resolvi conhecer o camping todo. Sabe, eu e o Paulo levamos mais de hora para percorrer o lugar. Acho que vem gente de toda a parte para aproveitar o clima e a paisagem. Assistimos a uma discussão por causa do espaço que virou briga. Felizmente, o camping tem polícia permanente e tudo se acalmou logo. Parece que vai haver um posto policial na área. N a zona nova do camping já tem um pessoal que em vez de barracas faz cabanas lá e estão passando temporadas inteiras sem sair da região.
2 de abril. Querido diário: tive uma surpresa, hoje. Tem telefone no camping. É só uma cabine da companhia telefônica, mas é possível que em seguida se instale uma central. Outra novidade: o pai do Paulo levou a farmácia dele pra lá. Fica na avenida principal e como tem muitas lojinhas e casas comerciais eles se reuniram e estão pedindo calçamento no camping. Depois da janta fomos à primeira sessão do cineminha do camping.
11 de julho. Querido diário: o banco do papai tomou uma decisão das boas: abriu uma filial lá e deu a gerência pro velho. Mudamos logo para uma casa alugada por uma grana sem fim (aqui tem especulação imobiliária também), meio longe mas confortável. O pessoal da associação de bairros elegeu papai como presidente. A reunião da posse não foi boa: todo mundo se queixou que não deu pra ouvir o discurso de papai por causa do barulho da construção do edifício do centro comercial (nove andares) ao lado. Ontem vimos uma barraca de lona. Incrível.
29 de julho. Querido diário: papai ficou irritado com o camping. Houve um engarrafamento na nossa quadra e ele não pode ir pescar. Talvez compre uma casa fora do centro. Fico longe do Paulo, mas há a linha de ônibus. Quem reclama são os caras dos arrabaldes; pra eles é difícil ter que vir até aqui onde tem padarias, lavanderias, oficinas, hospital etc. Começaram, aliás, a construção do aeroporto. E a central telefônica ficou uma beleza.
15 de setembro. Querido diário: li no jornal do camping que em breve teremos uma estação de tevê. Chega de ouvir só aquelas rádios com comerciais. Iniciaram uma campanha de plantar árvores e cuidar mais da água. Isso é bom pro camping. Conscientizar o povo, né? A polícia tem muito trabalho é com os marginais. Fora isso, nós acreditamos no progresso do Camping, como diz papai.
26 de outubro. Querido diário: Paulo trabalha numa firma metalúrgica. É a maior chaminé do camping. O trânsito está maluco. A vida aqui está cara. Fiz quinze anos. A poluição das indústrias incomoda. Vêm aí as eleições para prefeito do camping. Estão removendo vilas pobres inteiras para longe. Aconteceu um suicídio. Falta luz. O time do camping não entrou no nacional. Assaltaram outra vez o supermercado.
6 de dezembro. Querido diário: amanhã, vamos procurar um lugar para acampar. Não agüentamos mais essa cidade.

Fonte: Fraga,J. G . In:Ficção. Rio de janeiro,n.16,abr.,1977.


http://wwwducilenegestar.blogspot.com/2009/09/relato-de-experiencia-texto-canping.html

O problema educacional (ou sacrifício de mãe)

Uma pobre mãezinha levou o filhinho ao psicanalista, porque ele era incapaz de comer qualquer coisa. Ou coisa alguma. Só gostava de comer o impossível. O médico examinou o crescimento mental do menino e recomendou à mãe que não forçasse o menino a comer o que ele não gostasse.
Percebia-se nitidamente que era um jovenzinho de formação extravagante, a quem se deveria oferecer apenas pratos ímpares. Assim foi que a mãezinha, muito da psicanalítica, chegou a casa e perguntou ao filhinho o que é que ele gostaria de comer. O menino nem titubeou. Disse logo:

-"Uma largatixa".
Com grande repugnância e não menor dificuldade, a mãe(zinha) conseguiu caçar uma lagartixa e deu-a ao menino. O menino olhou a lagartixa com igual ânsia, um olho pra cá, outro pra lá, os dois olhos parando lá em cima e exclamou:

-"Come vuoí, mamma, que io mangi questa porcheria cosí cruda senza ne meno il doppio burro?" - ou seja: "Como é que a senhora pretende que eu coma essa porcaria assim crua: não tem sequer manteiga dupla?"
A mãe, sempre mãe, e mais mãe porque psicanaliticamente orientada, pegou a lagartixa, pô-la na frigideira e fritou-a como o menino desejava.
- Está bem agora? - perguntou ao menino.
- Não - respondeu a peste , - parte-a ao meio.
A mãezinha tão Kleiniana, coitada!, fez o que o menino mandava. O menino olhou a mãezinha, a mãezinha olhou o menino, o menino mexeu um olho, a mãe baixou a cabeça meio centímetro, o menino mexeu o outro olho, a mãe voltou com a cabeça à posição anterior e aí o menino impôs:
-Eu só como a lagartixa se a senhora comer metade.
- Então come tu que depois eu como - disse a mãe.
-Não, você tem que comer primeiro - disse o menino.
A mãezinha sentiu uma golfada de nojo, mas, que ia fazer?, mãe é mãe e, além do mais, ela tinha tantas raízes iunguianas! Fechou os olhos e, para não sentir, com um gesto rápido, colocou metade da lagartixa dentro da goela e engoliu. O menino olhou-a firme, olhou a metade da lagartixa dentro na frigideira e começou a chorar:
-"Ai, ai, ai!… A senhora comeu exatamente a metade que eu gosto. Essa parte eu não como de modo nenhum."
Moral: Quando você tiver de engolir um sapo, não há o que escolher. Mas quando tiver que engolir metade do sapo escolha sempre a metade que coaxa.
Submoral: Dizem alguns historiadores que a mãe deu uma bruta de umasurra no garoto. Mas os historiadores que abraçam essa versão não sabem os terríveis traumas (ai, freudianos) que causam na infância esses choques físico-morais provocados por espancamentos. Todas as mães modernas preferem comer lagartixas.
Do livro: Fábulas Fabulosas Millôr Fernandes Círculo do Livro Instituto de Aprendizagem e Comunicação Empresarial

http://tauc.aac.uc.pt/postnuke/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=80

Livro: a troca

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida.


Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado.

E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.

De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.

Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.

Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.

Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava.

Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.

Mas, como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.

Lygia Bojunga
http://www.casalygiabojunga.com.br/frames/livroatroca.htm